Domingo, 5 de Outubro de 2008

Antes de iniciar a leitura...

 

                       

 

      «Arranja a posição mais cómoda: sentado, estendido, enroscado, deitado. Deitado de costas, de lado, de barriga. Na poltrona, no sofá, na cadeira de baloiço, na cadeira de praia, no pufe. Numa cama de rede, se tiveres alguma cama de rede. Em cima da cama, naturalmente, ou dentro da cama. Até podes pôr-te de cabeça para baixo, em posição de yoga. Com o livro virado ao contrário, bem entendido.

      (...)

      Bem, afinal de que estás à espera? Estende as pernas, estica também os pés numa almofada, em duas almofadas, nos braços do sofá, nas orelhas da poltrona, na mesinha de chá, na secretária, no piano, no mapa-mundo. Descalça primeiro os sapatos. Mas só se quiseres ficar de pés soerguidos, porque senão torna a calçá-los. E agora não fiques para aí de sapatos numa mão e livro na outra.

      Regula a luz de modo a não te cansar a vista. Fá-lo já, porque assim que estiveres mergulhado na leitura, nem penses em mexer-te. Arranja-te de maneira que a página não fique na sombra, um emaranhado de letras negras sobre um fundo cinzento, uniformes como uma ninhada de ratos; mas tem cuidado para que não lhe bata de chapa uma luz demasiado forte e que não se reflicta no branco cru do papel roendo as sombras dos caracteres como num meio-dia do Sul. Tenta prever agora tudo o que puder evitar-te o interromper a leitura. Os cigarros ao alcance da mão, se fumares, e o cinzeiro. Que mais é que falta? Tens de ir fazer chichi? Bem, tu é que sabes.»

                           Italo Calvino, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante

 

publicado por Cris às 18:06
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Domingo, 16 de Dezembro de 2007

Que livro levarias para uma ilha deserta?

  

                    



"O LIVRO DA SOLIDÃO"
CECÍLIA MEIRELES


Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro - poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso - mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra - que é o que dá existência ás noções - vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, - e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, - mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato - porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino - umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

(SÃO PAULO, FOLHA DA MANHÃ, 11 DE JULHO DE 1948.)


publicado por Cris às 19:02
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